Aprendendo com a Professora

MOACYR SCLIAR – DA FOLHA DE S. PAULO
Aprendendo com a professora
História é vida: revisar a nossa própria trajetória, pensar nos erros. Esse é o objetivo da história, universal ou pessoal
Ter os pais como professores ou estudar na escola em que eles dão aulas tem prós e contras. Mães e filhos comentam como é essa relação.
“MEU FILHO : escrevo-te esta carta -carta, não e-mail: sou uma pessoa antiga- no meu duplo papel de mãe e professora. Sua mãe, sempre fui; sua professora, apenas por um ano, na pequena escola em que você cursou o que se chamava, na época, de curso primário. Faz muito tempo que isso aconteceu, quase 40 anos, mas devo lhe dizer que lembro de tudo, de cada aula que lhe dei.
Você me disse muitas vezes que aquele havia sido um período difícil, que os colegas debochavam de você -quando não lhe agrediam- por ser o filho da professora. Mas devo lhe dizer que você foi um bom aluno, e que só não lhe dei notas mais altas para não ser acusada de estar favorecendo meu próprio filho.
Mas não é por isso que lhe escrevo. Escrevo porque a Ligia, sua mulher, veio me procurar desesperada.
Disse que você, num daqueles acessos de fúria que sempre foram um característico de sua pessoa, tinha ido embora de casa jurando que nunca mais voltaria. Com o que você deixou a Ligia e seus filhos desesperados.
Então resolvi lhe escrever, meu filho. Como mãe, claro, mas sobretudo como professora. Acho que você esqueceu muita coisa do que lhe ensinei. Tomei, pois, a liberdade de reavivar sua memória, de lhe dar esta pequena lição. Uma vez professora, sempre professora, você sabe.
Eu lhe ensinei história, mas você esqueceu que história não são só datas. História é vida: revisar a nossa própria trajetória, pensar nos erros que cometemos. Esse é o objetivo da história, universal ou pessoal.
Eu lhe ensinei aritmética, meu filho, mas você esqueceu que, na relação entre as pessoas, é melhor somar do que diminuir, é melhor multiplicar do que dividir. Você esqueceu que a briga é apenas uma fração de nossas vida e, devo lhe dizer, uma fração muito ordinária. Você esqueceu que todas as equações têm incógnitas, e que descobrir quais são essas incógnitas é fundamental para conviver com os outros.
Ensinei-lhe geometria, meu filho, mas você esqueceu que a vida, como os polígonos, tem muitos lados e que todos eles são importantes.
Ensinei-lhe geografia, meu filho, mas você esqueceu que as pessoas, como os países, têm fronteiras, e que é preciso respeitar as fronteiras emocionais de cada um, especialmente aqueles que conosco convivem. Ensinei-lhe ciências, meu filho, mas você esqueceu que na vida familiar o afeto faz o mesmo papel do oxigênio, sem o qual não podemos respirar.
Ensinei-lhe português, meu filho, mas você esqueceu como se conjugam certos verbos. O verbo amar, por exemplo. Você esqueceu que este verbo, meu filho, deve ser conjugado em voz alta, todos os dias, a qualquer hora. Todos os dias, a qualquer hora, devemos dizer para as pessoas com quem partilhamos a existência: eu te amo.
Diga isso para sua esposa, diga isso para seus filhos. Diga. É a sua lição de casa. Se você não fizer sua lição, meu filho, eu sinto muito, mas vou ter de considerar você um aluno relapso. Vou deixar você de castigo depois da aula, e você vai ter de escrever cem vezes a frase: “Não devo esquecer as lições da professora”.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

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